VASCO MARTINS

aqui não há trevos de 4 folhas

 

1

 

Terra de poços secos,  

secos e com entulho diverso:

copos de vidro, bolsas de plástico, garrafas vazias de 

vinho ,

papel higiénico usado, pedaços de jornais,

 pentes enegrecidos, óculos sem lentes, latas

 enferrujadas de sardinha, latas enferrujadas sem marca.

Terra de homens castanhos de calças cerzidas , com 

mais de

oitenta anos a arrancar pedras

á crosta da ilha.

Terra de  velhos que poisam a picareta á  espera que 

passem camiões  que foram ao mecânico  centenas 

de vezes, emendar peças e soldar radiadores.

Ali perto de um desses velhos, estão ruínas de casas que 

já tiveram vida, com grafitis, nomes e datas,

  1969, 1976, 1983, 1999:

Ana ama João, Lena ama alguém, corações patéticos que 

já disseram alguma coisa e hoje,

 talvez já nada dizem, o tempo, o tempo que passou,

 fixado  nessa maneira  até durarem as ruínas .

 

2

 

As vendedoras de leite que vivem a dez quilómetros 

da cidade,

pedem boleia a todos os carros que passam. Já com as 

vasilhas vazias, enchem os carros de cheiro doceacre do 

leite de cabra que comeram  plantas endémicas nas 

encostas dos montes.  As vendedoras pouco falam, nem 

buscam conversa, querem somente chegar a casa com os 

1.200.00 da venda do leite, cuidar das crianças que 

vieram ou vão á escola, cozinhar nas botijas a gás que 

impuseram por todo o mundo pobre, e,  á tardinha, 

descansarem a ver o horizonte azul do mar e do céu. À 

noite vêm telenovelas brasileiras,  

um turista mexicano enviou uma televisão, 

compraram uma antena e têm um motor para o qual 

quotizam para pagar a gasolina vendida por um jovem 

sorridente da cidade, porque assim o ensinaram .

E deitam-se para se levantarem com o sol a Este, 

ordenhar as cabras e voltarem de novo á cidade vestidas 

de citadinas com

lenços multicores na cabeça para esconderem os cabelos 

de vento. São sisudamente alegres, todas cheiram a suor 

agradável que não incomoda, a suor do campo. Deve ser 

da alimentação á base de arroz, que substituiu o milho, 

essa planta importada que se vê nos tempos das boas 

chuvas , ou em grão, dos sacos made in , made in, made 

in , may day, may day, may day.

 

3

 

Servem depois os sacos para fazer velas para os botes que vão e vêm dos lados do ilhéu onde nicham  pássaros raros que ás vezes são apanhados pelos pescadores que gostam de carne de pássaros com gosto a peixe.

As velas de saco de milho são bonitas ao longe: brancas e azuis, fazem parte do céu e do mar, do infinito  e das ondas brancas , quem me dera um dia ter a coragem para ir com eles  ás 4 da manhã e voltar ás 3 da tarde, salgado e cansado, mudo como um cepo ou um remo, mas não posso.

Mas bem gostaria de estar com eles, devem ser homens verdadeiros, pelo menos quando estão no mar, não são nem oportunistas nem esquizofrénicos, tal como os que cumprimentam só quando precisam de algo ou estão bêbados, os humanistas da bebida, que se tornam os mais idiotas seres existentes na face deste planeta. Creio que os pescadores não bebem grogue no mar, só água com gosto a vasilha de plástico amarelo, que continha óleo oferecido pelos ricos países que é revendido a baixo preço para ajudar na labuta do dia a dia de um país asmático.

 

4

   

Ali vai mais um homem com uma sacola aos ombros, certamente que vai para uma pedreira . Mais um homem da idade da pedra.

Quantos anos tem não se sabe, pode ter 42 como 64. Nenhum carro pára para lhe dar boleia que ele pede com gestos bruscos. Sabem que tresanda a suor de  seis dias e que as suas roupas não foram trocadas há muito tempo e sem dúvida que não é uma jovem mulher que consegue boleia mais facilmente. Ali vai ele, sem queixumes, usa óculos espessos, é míope, ali vai ele com a sacola ao ombro, deve conter água e pão. Ali vai ele, ali vai ele, nada seguro, sólido como uma pena ao vento, sem sorrir porque a vida é dura como as pedras que quebra todos os dias, a vida é somente o vento que sopra nos ramos secos, a vida é o sol abrasando o chão do meio-dia, a vida é o canto desesperado de uma ave de rapina que voa alto á procura de uma presa, a vida está ali nesse homem que avança para o seu trabalho com uma sacola suja aos ombros, sem sonhos de espécie alguma.

 

5

 

Há dois burros á beira da estrada que comem os ramos mais tenros das acácias, ou as sementes doces que até as crianças comem por gulodice, ou porque lhes falta açúcar energético. São burros felpudos, uma fêmea e a sua cria. São os únicos animais que se vê por ali, deambulam conforme o instinto , confundem-se com o castanho do chão, ás vezes nem se dá por eles. A fêmea tem uma corda ao pescoço, deve se ter soltado do lugar onde a amarraram, ainda bem, animal a ser queimado pelo sol, atado a um único lugar neste deserto  de 227 Km2. A cria segue a fêmea obedientemente, não zurram nem param para olhar os que passam .

 

6

   

Mas passa alguém num carro azul, a alta velocidade, deve ter algum encontro importante marcado ou deve conduzir pelo prazer

da velocidade. Deve ir a 140 á hora, na estrada de pedras pontiagudas que já  precisa de manutenção. Vai sozinho e não viu os burros, mesmo se fosse devagar não os viria certamente , o que interessam dois burros famélicos , impávidos,  provincianos, desnutridos? O condutor parecia preocupado. O que lhe passaria pela cabeça?: ouviria o barulho do vento que entrava pelas

frestas das janelas, ouviria o ruído surdo dos pneus no chão de pedra, ou ouviria uma música tcheq,thecq,tchecq tac, com os baixos transtornados e alguém que cantava o amor enganado ?

Vai ter com os amigos , amigos-cerveja ou com a amante que o espera impaciente, sentada frente ao mar sem ver o mar, enervada com a espera e ao mesmo tempo ansiosa para ser amada na areia?

O carro passou, passou o homem, ficaram os burros sossegados.

 

7

 

Lá foi um homem que espero não ser cruel. Porque os homens na busca incessante da água e da comida e do dinheiro para sobreviverem, tornam-se maus. E mais maus e cruéis, levianos e tristes se tornam, quando buscam poções de eternidade, bem estar para além das esperanças, usurários frementes, bancos usurários legais, comunicações com taxas altíssimas

que só servem para esmagar as economias do dia a dia, ah a leviandade está em ti, bem lá no fundo vigente,

prestes a sair do teu peito forrado de ferro ou de seda, quando assanhas as unhas

e os dentes, á busca do teu quintal num lugar onde todos os quintais estão tomados e os que porventura existem já não existem.

Cruel és tu que puseste de lado a poesia da juventude, mesmo se pensaste um dia viver numa pequena horta no meio da ilha. Leviano és tu que abandonaste tudo pelo dinheiro e bem estar, deixaste para trás o amor e as estrelas, a criação constante e a  água salgada do mar matutino onde refrescavas as tuas esperanças. Triste és tu que já nem podes ver

um nascer de Sol sem pensar com nostalgia nos tempos em que o adoravas, porque hoje já não sentes um raio

cósmico sequer atravessando o teu corpo, e milhões atravessam neste momento o teu corpo insaciável, que busca no sexo

a última paródia e a última luxúria sem alma, és tu o cruel que seduz virgens de 14 anos sem saber

o que fazes e quais são as consequências. Cruel és tu que educas cães de guarda para serem assassinos e

paranoicamente barulhentos. Leviano és tu, literato, que de tanto ler e analisar já nem apreendes o essencial,

dissecas o que é evidente, destruis o que é belo e tens profundos problemas de identidade. Triste és tu

que teimas em cultivar milho  e tornas-te arrogante quando caem uns pingos de chuva

na tua tola , proprietário de terra sem terra.

Idiota és tu que pensas só no lucro, e pões todo o mundo ansioso na busca constante do dinheiro,  acreditando que só isso é importante e o único valor. Leviana és tu, fêmea jovem, que te exibes numa praia a fornicar com o teu parceiro marimbando para quem está ali perto a  ouvir  as ondas e a cheirar o iodo.

És tu o mais triste que inveja por tudo e por nada, a casa do teu vizinho, a roupa da tua prima, o carro da tua melhor amiga,

o sorriso da apresentadora da televisão , a alegria de quem ama, e tanta coisa mais que recuso anunciar .

Ah, ah, mas ali vai um homem que espero não ser cruel nem interesseiro, é tudo. Passou no carro azul, a alta velocidade , a alta velocidade.

 

8

 

Como é magnifica  a luz da Lua nesta baía do silêncio, faz lembrar a paz do ser, essa paz distante que nunca mais sentiremos, impregnados como estamos de desonestidade e de palavras.

Palavras, quantas palavras se cruzam no espaço de um segundo.

Quantas delas não valem nada, apanham oxigénio e desaparecem com o vento.

Amas a palavra bem sei, gostas dos discursos bem feitos e ficas contente com a tua erudição que pouco serve para saberes viver. Porque nunca ouviste o teu coração, nem nunca ouvirás, só na hora em que será tarde. E tarde será.

 

9

   

Mas o que interessa isto tudo, estes desabafos  todos que põem a sorrir qualquer ignorante e sofista? Pois bem, chega! Chega de recriminação. Chega de queixumes. Cada um segue o caminho que traçou. Mas adaptado á civilização mesquinha que construis não serei jamais.

Volto á minha metafísica , ao meu lugar onde ninguém vai a não ser se eu quiser, a não ser que tenham nos olhos a brandura

e a impetuosidade das montanhas, a não ser se a vida lhes ilumine o rosto e com o  sorriso generoso

abraçarem a noite, como quem abraça as divindades que em nós estão enclausuradas. Ali perto , naquela encosta cheia de sombra , está uma casa de pedra  em bom estado, isolada e sem gente. Apetece-me lá ir  e ouvir o vento  soprar  por cima das telhas. Livre, aqui dentro, bem atado, levo o silêncio da música . Lá perto sei que existe uma pequena nascente de água fresca que cheira a penas de pardais. Afastarei as penas e beberei goles de água pura.